Digestibilidade e tolerabilidade da dieta enteral
O doente crítico é um paciente bastante desafiador no contexto da terapia nutricional. O paciente grave costuma apresentar múltiplas disfunções orgânicas, sendo a disfunção do trato gastrintestinal (TGI) uma delas. Tal disfunção é um obstáculo para realização de uma terapia nutricional enteral adequada.
Além disso, o paciente passa por diferentes fases durante sua trajetória na UTI apresentando diferentes momentos metabólicos que devem ser avaliados no planejamento da terapia nutricional. Neste contexto, a oferta proteica é de extrema importância e deve ser avaliada não apenas em relação a quantidade ofertada como também ao tipo de proteína, uma vez que o tipo de proteína pode influenciar tanto na tolerância quanto na estimulação de síntese proteica.
FASES DO PACIENTE CRÍTICO
Apesar de não existirem biomarcadores clínicos específicos para identificar em qual fase o paciente está na jornada dele na UTI, existem aspectos específicos das diferentes fases que devem ser levados em conta na condução da terapia nutricional1.
A última diretriz da ESPEN (2019), sugere dividir as fases da UTI em fase aguda precoce (primeiros 2 a 3 dias de UTI), fase aguda tardia (até o sétimo dia) e fase de recuperação (após a primeira semana)2.
Vale ressaltar que o paciente pode apresentar mais de uma fase aguda ao longo de sua jornada. Ou seja, ele pode estar na fase de recuperação, apresentar complicações e regredir para a fase aguda. Essa é uma das razões pelas quais, a avaliação e o monitoramento diário na beira leito fazem a diferença na prática clínica.
DIGESTIBILIDADE E TOLERABILIDADE
Até 62% dos pacientes apresentam, ao menos, um sintoma gastrointestinal por pelo menos um dia.3 A exposição à ventilação mecânica, o uso de drogas vasoativas, sedação, analegesia, alterações hormonais, antibioticoterapia, disbiose e a imobilidade contribuem para a disfunção do TGI.4
Os pacientes críticos costumam apresentar alterações na motilidade gástrica e redução na capacidade absortiva.5 Tal disfunção do TGI leva a um aumento da incidência de infecções, aumento de tempo da ventilação mecânica e aumento de tempo da internação hospitalar.6,7 Além de acarretar intolerância da nutrição enteral, comprometendo a terapia nutricional e o alcance das metas. Dados mostram que grande parte dos pacientes não alcançam suas metas nutricionais por distúrbios do TGI.8
A análise qualitativa da composição das formulações, no que tange a qualidade proteica, pode favorecer a tolerância dos pacientes à dieta enteral.9
QUANTIDADE E QUALIDADE PROTEICA
Garantir uma oferta proteica adequada em doentes críticos é extremamente importante visto que a proteólise é intensa e leva a acelerada perda de massa muscular.10 Recomenda-se ofertas proteicas entre 1,2 a 2,5g/Kg de peso nas atuais diretrizes.2,11,12 Mas, além da quantidade, as fontes proteicas das formulações enterais devem ser avaliadas em relação a digestibilidade. Estudos mostram diferenças significativas entre diferentes fontes proteicas em relação ao esvaziamento gástrico. A caseína, por exemplo, é uma proteína de digestibilidade lenta, e ao entrar em contato com o ácido gástrico do estômago pode sofrer coagulação, resultando no retardo do esvaziamento e aumento do volume residual gástrico13. Dependendo do montante de caseína coagulada podem aparecer inclusive sintomas relacionados a obstrução gástrica. Estudos mostram diferença significativa no esvaziamento gástrico em indivíduos saudáveis alimentados com formulações enterais compostas por blend proteico (proteína do soro do leite, caseína, proteína de soja e ervilha) em relação a caseína isolada.14
CONCLUSÃO
Reconhecer as diversas fases associadas ao estresse metabólico e individualizar a terapia nutricional para cada uma delas é fundamental para garantir a adequada oferta nutricional. Bem como, avaliar a disfunção do TGI e como a formulação enteral pode otimizar a tolerância digestiva promovendo melhores desfechos clínicos
PREFERÊNCIAS
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